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quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20539: Historiografia da presença portuguesa em África (195): A Guiné vista pelo seu primeiro governador, Pedro Inácio de Gouveia (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Janeiro de 2019:

Queridos amigos,

Estes relatórios dos primeiros governadores da Guiné são peças documentais de valor incalculável.

No caso vertente, Pedro Inácio de Gouveia deixa-nos aqui o primeiro relatório, ele foi o primeiro governador, entre 1881 e 1884, a ele se deve um texto esplêndido referente à viagem que o então Alferes Francisco Marques Geraldes fez a Selho, para resgatar um conjunto de mulheres raptadas em S. Belchior, no Geba.

É um documento que revela a situação de uma colónia que continua sem projeto, é uma feitoria e um entreposto em decadência, alerta o Governo para a presença crescente dos franceses no Casamansa, a colónia tem tropa deficiente e entusiasma-se a falar das potencialidades agrícolas.

Peço a atenção do leitor para três imagens do chão Felupe, que é o tema de eleição da doutoranda Lúcia Bayan e que gentilmente as cedeu e as comentou, uma bela intervenção que apraz agradecer e até pedir mais.

Um abraço do
Mário


A Guiné vista pelo seu primeiro governador, Pedro Inácio de Gouveia

Beja Santos

Desafetada de Cabo Verde em 1879, o primeiro governador da Guiné tomou posse em 1881 e enviou ao Ministro da Marinha e do Ultramar o seu primeiro relatório em 1882. É um documento de muito interesse, o brioso oficial da Marinha percebe-se estar entusiasmado, não esconde a penúria que envolve a sua administração, sente-se no dever de entrar em detalhes para que Lisboa compreenda que aquela colónia não passa de uma feitoria, está completamente subaproveitada e cercada pelos apetites coloniais franceses, daí o seu esforço de sensibilização. É um tanto formal, por vezes eloquente, é explicativo, não quer deixar nenhuma verdade na penumbra.

Ele escreve assim:

“A História da Guiné Portuguesa desde a sua fundação como Feitoria, depois como Distrito, até à sua autonomia como Província, não se faz num limitado campo de um relatório. A história política do território da Senegâmbia Portuguesa há-de fazer-se um dia com os elementos arrecadados no Arquivo do Ministério e outros dispersos na sede do Governo da Província de Cabo Verde.

O Arquivo da Província é o mais deficiente possível; os elementos escasseiam por toda a parte, e tudo é pobre em subsídios para a História da Guiné, desde o primeiro estabelecimento na antiga Praça em Bissau até à ocupação em Bolama. A Província que tenho a honra de administrar, o território que compreende a Senegâmbia Portuguesa, não está definido, não está limitado. Segundo as opiniões mais conspícuas, situar-se-ia ao sul do rio Gâmbia, o limite boreal, e ao austral em Cabo Verga, entre os rios Casamansa e Nuno. A Guiné, pela sua autonomia, foi dividida em quatro concelhos, com sedes em Bolama, Buba, Bissau e Cacheu, divisão que não foi sancionada pelo Governo de Sua Majestade.

O actual Concelho de Buba era no passado denominado de Bolola. Os pontos fortificados, partindo de sul para norte são: Bissau, Geba, Cacheu, Zinguinchor e Farim. As leis repressivas contra o infame tráfico de escravos, dificultando a sua exportação e a carência quase completa de mercado importador, puseram termo a este vil comércio. Na impossibilidade de comerciar em escravos, dirigiram-se as atenções europeias para os vastos campos incultos, e puseram ombros à agricultura, que então só era embrionária, compensando aliás generosamente os capitais empregados (da leitura deste parágrafo, compreende-se que a consideração do autor é dirigida ao desenvolvimento em geral do Império Português em África).

Enquanto a Guiné não for verdadeiramente conhecida, despida de temores devidos ao seu passado, enquanto as informações colhidas na metrópole não colocarem esta Província no seu verdadeiro pé, há-de vegetar e não viver, apesar das suas muitíssimas riquezas. Mandei confeccionar o recenseamento geral da população, através de mil dificuldades pelos atritos que tive de vencer”.

O documento é detalhado sobre o estado geral das infraestruturas e equipamentos, em dado momento o governador pormenoriza o estado da administração militar:

“A força militar da Província compõe-se do Batalhão de Caçadores 1 da África Ocidental e de uma Bateria de Artilharia. Em geral, a soldadesca é bastante eivada de vícios; nos angolanos predominam o da embriaguez e o crime de furto, nos cabo-verdianos a insolência e o desrespeito; os europeus são, talvez, os melhores, ainda que tragam já consigo uma bagagem pouco brilhante de faltas disciplinares. O angolano na paz não presta, em fogo é suportável, portando-se até com bravura; o cabo-verdiano, salvo excepções, é tímido e fraqueja no combate, pensa demais na família e arreceia-se pela morte. 

"O Batalhão, que veio transferido em condições muito más, por falta de quartel apropriado, sendo os soldados obrigados a dormir sob as árvores e comandados por oficiais que não tinham as verdadeiras noções do seu dever, ressentiu-se por muito tempo da pouca disciplina de então”.

Mostra-se muito preocupado com a efetiva colonização e explica ao Ministro o que pretende fazer para haver pacificação com os povos da Guiné e disciplina nas suas tropas:

“Posso garantir a V. Ex.ª que não há nada preferível para captar a confiança destes povos incultos a dar-lhes uma lição severa. Compreendem a força e entendem também a generosidade.

No princípio da ocupação de Bolama, quando a Guiné ainda era distrito, os Bijagós quando vinham a Bolama consideravam-se em país conquistado, e o saque era geral quando não havia a prevenção de fechar os estabelecimentos a tempo. Mais tarde, já na minha administração, sucedeu o que já tinha sucedido; os Bijagós vinham fazer o seu tráfico humilde e sisudamente já ninguém os receava; a pilhagem existia pela inversa, eram os soldados que roubavam os Bijagós, a ponto de não quererem estes vir a Bolama comerciar porque os interesses eram para a soldadesca, pelo furto de grande número de artigos.

A Bateria de Artilharia foi destinada a guarnecer as fortalezas da Província. O princípio era justo se a Província tivesse fortalezas. Bolama não carece delas; Bissau possui uma meio derrocada, que tem para mim o defeito de ter sido útil, está hoje a população da vila de S. José de Bissau sofrendo, sem necessidade, as consequências de uma aglomeração de gente e daquele espaço inutilizado em que as condições higiénicas da localidade são das piores possíveis; Cacheu possui apenas uns fortins desmantelados; Geba, semelhantemente; e só Buba e Farim é que têm um sistema de fortificação passageira.

A disciplina quanto a oficiais parece-me que devia ser o mais rigorosa possível, evitando-se que chegassem a oficiais superiores, ou mesmo a capitães, oficiais que têm estado na inactividade temporária por castigo, ou hajam cometido faltas que os obriguem à prisão”.

E depois destas considerações pormenorizadíssimas, o governador discreteia sobre a economia, fala das produções da Guiné ao tempo, a saber: mancarra, amêndoas de palma, arroz em casca, couros e goma. Dá informação de que o comércio estava todo entregue às casas francesas de Marselha e às situadas na Bélgica, o centro das operações era no Senegal, na Guiné estas casas comerciais apenas conservavam sucursais e os capitais lucrativos não eram empregados em benefício e para a prosperidade do território guineense.

Na continuação do seu relatório fala da administração da justiça, da instrução pública, da administração eclesiástica, chega mesmo a referir o número de freguesias, nove, e dotadas com seis padres, cinco dos quais eram missionários oriundos do colégio de Cernache do Bonjardim.

Revela-se muito inquieto com a situação existente no Forreá e a necessidade de proteger os Fulas-Pretos.

Este é o primeiro documento de um governador da Guiné, a Biblioteca da Sociedade de Geografia conserva outros documentos destes primeiros governadores, voltaremos ao assunto.

Honra-nos com imagens da vida Felupe a doutoranda Lúcia Bayan, que gentilmente oferece três fotografias do seu acervo e tece os seus comentários:

O chão Felupe, apesar de pequeno, tem características muito distintas, visíveis na instalação das tabancas, tipo de casas e na produção agrícola. Devido a estas características, os Felupe consideram o seu chão dividido em três zonas:


a) zona de mato (kajamutai) com 11 tabancas: Sucujaque, Tenhate, Basseor, Caroai, Varela Medina, Varela Iale, Catão, Cassolol, Edjatem, Budjim e Suzana.

Tal como o nome indica, esta zona tem muitas árvores, especialmente palmeiras e cajueiros, sendo por isso zona de produção de vinho de palma e de caju. As moranças são espaçosas e as casas com grandes varandas abertas. Há estradas e caminhos pelo que a comunicação entre tabancas é fácil e recorrente.


b) zona de areia (kassukai) com 5 tabancas: Edjim, Elalabe, Ossor, Bolor e Jufunco.

Esta é uma zona com poucas árvores, onde não há produção de vinho de palma nem de caju. Em vez disso, a população dedica-se à pesca e secagem de peixe e, na estação seca, produz tomate nas bolanhas. Estes produtos são depois vendidos nos mercados de Elia e Arame a mulheres que vêm propositadamente de Bissau. As moranças são menos espaçosas e as varandas das casas são fechadas com paus para diminuir a entrada de areia. Sendo zona de areia, o acesso é difícil, reservado apenas a carros com tração às quatro rodas. Por isso, não há estradas e a comunicação entre tabancas é feita essencialmente através de canoas.


c) zona da água (assumulô) com 3 tabancas: Arame, Elia e Jobel.

As duas primeiras tabancas estão situadas numa zona mista, isto é, com mato e água. Por isso, nestas tabancas há áreas de produção de vinho de palma e de caju. Jobel está totalmente situada na água. Esta tabanca é constituída por grupos de casas instaladas em pequenos montes que, durante a maré alta, parecem pequenas ilhas e algumas casas parecem mesmo assentes em palafitas. Em Arame e Elia, as moranças são muito dispersas. Na parte norte, zona de mato, a comunicação entre elas é feita por estrada e de canoa na parte sul, zona de água. Em Jobel a comunicação é feita apenas por canoa e depende das marés.

Fotos (e legendas): cortesia da doutoranda  Lúcia Bayan
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Nota do editor

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